Visita Guiada é um trabalho autobiográfico, uma pesquisa sobre a memória. Nos três anos que dediquei ao projecto revisitei lugares que definiram a minha infância e adolescência, lugares que constituíram a cenografia da minhas rotinas. Como que cicerones dessa viagem retrato algumas das pessoas do meu núcleo familiar.
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Foram várias as questões que surgiram na fase inicial ou no decorrer do projecto, quer no âmbito pessoal e emocional, quer no fotográfico. Questões sobre percepção, relação e identidade, tempo, memória e lugar.
Será possível aceder ao passado através da fotografia? A fotografia é, na sua relação com o espaço/tempo absolutamente síncrona. A visão fotográfica é subtraída à nossa realidade concreta num decalque modulado pelo fotógrafo. A fotografia é refém do momento presente, mas este aspecto fulcral da sua natureza, não nos impede de representar o tempo nos seus vários humores, quer através dos recursos técnicos da câmara, quer pelos referentes culturais e de contexto, pela edição ou pela narrativa.
“Just as a three-dimensional world is transformed when it is projected onto a flat piece of film, so a fluid world is transformed it is projected onto a static piece of film.”
Stephen Shore, The Nature of a Photograph
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[expand title=”Memória ou Fabricação?”]
Esta natureza particular da Fotografia, o contacto directo com o mundo concreto, o poder transformativo através da câmara, fazem dela um meio singular na afirmação da visão subjectiva, individual, e coloca no mesmo plano o mundo onírico e o mundo sensível. O fotógrafo interage com o mundo comparando de forma dialéctica a sua imagem mental, o seu pré-conceito, com a sua experiência sensitiva concreta. No caso presente, essa imagem mental é delineada pela memória na procura de um vislumbre, de uma pista que permita desconstruir ou sintetizar os momentos passados, numa ligação, numa Verdade. Mas ao premir o obturador fabricamos novas memórias, o que vemos mistura-se com o que recordamos numa triangulação promíscua. Estar perante a memória é como estar perante um espelho. Como num auto retrato, apresentamo-nos diante de nós mesmos numa frontalidade persistente. Olhamos até fabricarmos uma nova história. A maior revelação é a de que se trata de uma encenação, de uma recriação dos nossos próprios gestos. Esta percepção embaraça-nos, compromete-nos.
Cada um dos lugares que visitei é-me absolutamente familiar mas que pelo olhar lento da câmara, pela distorção minimalista da memória, surgem-me estranhos. Na dialéctica entre a memória e a percepção detenho-me nos novos artefactos entretanto adicionados à paisagem com estranheza e fascínio. Os elementos visuais de um espaço, de uma paisagem, representam um papel fulcral na construção da familiaridade a que chamamos memória. A paleta cromática, a densidade rítmica, a distribuição vertical e horizontal das formas, assumem em cada lugar a singularidade de uma impressão digital.
“The ordinary is a very under-exploited aspect of our lives because it is so familiar.”
Martin Parr
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[expand title=”Sobre o Silêncio”]
“E se estivesse na pausa (entre os assobios) e não no assobio o significado da mensagem? E se fosse no silêncio que os melros falam uns com os outros?”
Palomar, Italo Calvino
Fotografo assíncrono dos eventos que dão propósito ao lugar, entre o último visitante e o próximo. Na sombra que se estende, tudo me parece abandono, esquecimento, tudo me parece insólito, num estado de latência ilusório, fora de tempo.
Movimentamo-nos pelo espaço como peões no tabuleiro de um jogo, procurando discernir, conjugar as manifestações verticais e horizontais, a perspectiva, a sobreposição, a transparência, numa linha de tempo imaginada. Os objectos ganham uma dimensão temporal distendida. O estado de latência ou letargia que atribuímos a cada um depende do momento em que olhamos. A natureza estacionária da fotografia dá-nos a ilusão de apropriação do tempo, mas os indícios do seu devir alastram viscosos silêncio adentro.
Fotografia é um pedaço de papel nas mãos, silencioso como um espelho quebrado.[/expand]
[expand title=”Retrato”]
O Retrato é usado ao longo do trabalho como elo conceptual, nomeadamente o da figura materna. Num dos quadros da exposição, constituído por 15 imagens, retrato a actividade lectiva da minha mãe na Universidade Sénior de São Francisco no concelho de Alcochete.
É o sentimento de pertença o que melhor identifico no seu olhar. Os textos da peça dão voz a uma observação aparentemente naive da sociedade expressa numa linguagem de humor revisteiro, que vai sublinhando um conjunto de valores geracionais. “No meu tempo.. Nós, os menos jovens.. Velhos são os trapos.” Em que ponto é que a ingenuidade se transforma pela convicção da entrega, pelo contexto criado em criatividade esclarecida? Talvez o faça de forma tácita, projectada nas sombra da experiência de vida acumulada do grupo. Estas aulas constituem em alguns casos uma brecha na solidão e na rotina cristalizada de anos. É um momento de diversão, protagonismo e expressão pessoal, de valorização e de comunidade. É um exercício sobre a Curiosidade, o Espanto, a Condição Humana. É uma experiência de Descoberta, é um instante de palco, de Teatro.[/expand]
[expand title=”Avô Alexandre”]
“Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras com uma imagem”
Herberto Hélder, O amor em visita.
Uma casa, uma adega, quatro paredes onde Cristo e Baco se digladiam. Lado a lado as fotografias dos antepassados e os talismãs religiosos. O último suspiro de uma casa, de uma vida titubeante entre o trabalho, o vinho e a fé, entre o abandono e o esquecimento. O Avô Alexandre morreu.
Ouvi muitas das suas histórias, alguns retalhos da sua vida. Espírito cosmopolita preso na aldeia, num meio rural, pesado, pobre. Cativo do trabalho, da família, do remorso.
«Que seriam os nossos espíritos, se não tivessem o pão dos objectos terrestres para os alimentar, o vinho das belezas criadas para os inebriar (…)?»
Oração do padre jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin (1881 – 1955)
Os retratos foram realizados no seu último mês de vida, no lar de idosos onde residia. Este portefólio integra três imagens da fotógrafa MariaAngelina numa captura póstuma.[/expand]
[expand title=”Suma”]
Pode a tradução fotográfica do que somos num momento vazio assumir vida própria dentro da fotografia, significado em si mesma, tornar-nos personagem de uma outra narrativa? Fotografar é contar uma história do avesso – primeiro o que aparece, depois o que está dentro, é uma procura de ecos surdos. É o exercício da memória um gesto de introspecção ou de desapego? A resposta, a Palavra apenas pode enfunar-se pelo bafo mudo da fotografia. O que do Silêncio nasce, no Silêncio se consome.
A promessa, o sonho, a desilusão e o desamor. a inocência e a fantasia. O desafio e a confiança. A experimentação, a vida, a Morte.
Que todas as palavras se extingam numa câmara escura.
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